sexta-feira, 8 de março de 2019

Laranjal do Jari - O "Beiradão" no Amapá

Temos visto a chamada na Globonews para um programa sobre o Beiradão, no Laranjal do Jari. Por este motivo, resolvi relembrar minha viagem ao município amapaense, uma experiência profissional  e de vida fantástica, que compartilho agora, reproduzindo um texto que escrevi na época, há quase 20 anos atrás!



Laranjal do Jari: Uma aventura no Amapá


Por Christianne Rothier

Poucos dias depois do brutal assassinato do velejador neo-zelandês Peter Blake no Amapá, em 2001, embarco para uma aventura que se inicia na mesma cidade que se tornou manchete nos jornais de todo o mundo em função da tragédia. Os “ratos d’água” - como são conhecidos os bandidos que assaltam as embarcações nos rios da Amazônia - protegidos pela escuridão e pela impunidade, dessa vez “se deram mal”. No dia seguinte o bando foi preso. Perplexos, disseram não saber que a vítima era tão famosa.  Cheguei no início da madrugada e logo fui envolvida pelo clima ainda tenso e pelo cheiro de fumaça das queimadas que estão destruindo grandes áreas da floresta. Do avião podíamos avistar na escuridão vários focos de incêndio. Só a chegada do inverno – o início da temporada de chuvas – poderá conter o fogo. A população de Macapá vem sofrendo  com o problema.

Partimos cedo pela manhã, conduzidos pelo Sr. Oceano Atlântico, um simpático motorista que logo nos cativou. Éramos 6 pessoas ao todo, um tanto espremidos numa Pic-up Ranger, na expectativa de, logo adiante, encontrar a Van que deveria nos levar, com todo o conforto, através das 5 horas de estrada de terra que separa Macapá de Laranjal do Jari.

Logo nos afastamos da cidade, levantando muita poeira na estrada cortada no meio da mata. Foi uma emoção sentir a floresta amazônica ao meu redor. As paisagens iam se sucedendo: áreas queimadas, buritizais, o cerrado. Muitas pontes de madeira sobre rios mais e menos estreitos, a floresta. Castanheiras imensas numa área de reserva extrativista. Sumaúmas vigorosas. Aqueles cenários de livro de geografia eram reais e me contavam muitas histórias. Paramos logo depois de uma grande ponte sobre um rio largo, de onde pude avistar um estaleiro e algumas embarcações típicas da região.






Descobrimos ser nosso motorista (o Oceano Atlântico) sobrinho de um certo Sr. Oceano Pacífico. Não é qualquer um que têm uma honra dessas! Envolvidos num ambiente descontraído e com a temperatura fresca do ar refrigerado, acabamos nos divertindo muito, imaginando a Van com 15 lugares que viajou somente com o motorista até seu destino final.

Chegamos em Laranjal do Jari perto de duas horas da tarde, exaustos. Os biscoitos do caminho nos tiraram a fome, o que nos permitiu “cair duros” na cama, no Hotel Central.

Laranjal do Jari é um município com 14 anos de idade. Nasceu na margem amapaense do rio Jari, em função do famoso e discutível Projeto de mesmo nome. Um empreendimento faraônico que enfrentou muitos problemas. Monte Dourado é a cidade que fica na margem paraense, em terra firme, onde os engenheiros e funcionários de primeiro escalão do Projeto se estabeleceram. Em Laranjal ficaram os peões, os “subalternos”, sobre as palafitas – tipo de construção típica da região amazônica, na beira dos rios, nas áreas de várzea que inundam na época das chuvas. Sem planejamento, a cidade foi crescendo da margem do rio em direção ao “agreste”, a terra firme. Há uma rua principal sobre aterro, onde circulam os carros e ônibus. Há 75 taxis por lá, que cobram R$ 1,50 em sistema de lotação. As outras ruas são na verdade passarelas de madeira suspensas sobre palafitas. No “beiradão”, há um grande comércio em lojas e barracas, que vendem de tudo.





Todas as construções na área de várzea são de madeira. Não há saneamento básico e a coleta de lixo só atinge 30% das residências. A cidade já foi “campeã”  em prostituição infantil, enfrentando ainda o tráfico de drogas e a violência de gangues. Por R$ 50,00 era possível “eliminar” um inimigo – o preço da vida em Laranjal.
Na várzea, o esgoto vai para debaixo das casas, onde há também muito lixo. Um estudo identificou que quase 90% desse lixo é composto de garrafas plásticas, que causam danos em muitas outras partes do Brasil e do mundo. No agreste, o esgoto corre (e fica estagnado) a céu aberto pelas ruas de terra, onde transitam animais e crianças brincam.





A gente atravessa o rio em pequenos barcos de alumínio – as “catraias” – com motor de popa, por R$ 0,30. Há um desconto na compra de 4 bilhetes, que saem por R$ 1,00. Cabem 15 passageiros, que, em instantes, chegam ao outro lado. Os carros atravessam numa balsa. Foi recentemente assinado um convênio com o Ministério do Meio Ambiente para uma série de obras, entre elas a construção de uma ponte.




Muitos investimentos estão sendo feitos na cidade. Governos Federal, Estadual e Municipal, ONGs e empresas privadas estão se unindo para construir um ambiente melhor para a população. Mas muito há ainda por fazer. A população jovem é imensa e vem participando de vários programas e projetos interessantes envolvendo ações sociais, escolaridade, esportes, arte.

O rio Jari é um afluente do rio Amazonas e faz a fronteira entre os estados do Amapá e Pará.  Subindo o rio (uma hora de catraia), a gente chega na cachoeira de Santo Antônio. É preciso pagar entre R$ 90,00 e R$ 150,00 para ir até lá. É bom levar água e frutas.
Nesta época do ano ela está meio “seca”, mas no inverno (o período das chuvas) ela se transforma. É um passeio maravilhoso. A catraia chega bem perto das quedas e você pode tomar uma deliciosa ducha. Foi lá que tomei um dos maiores sustos da minha vida! Ao sair debaixo de uma queda d´água, a maior parte do meu corpo estava coberta de uns “seres minhoquentos”  marrons, que até hoje não sei o que eram. Não me causaram nenhum dano, mas dei uns bons gritos!
A cachoeira está protegida por lei ambiental, mas em breve será construída uma hidrelétrica de “baixo impacto”, que usará 1/3 da vazão para produzir energia.





Outro passeio legal é até o Riacho Doce, há uns 15 minutos de catraia subindo o rio. Foi criada uma infra-estrutura para receber os visitantes com serviço de bar, banheiros, barracas, mesas e cadeiras, música ao vivo. O banho é delicioso. Há uma espécie de “piscinão” e a água é corrente, bem fresca, limpa.
Neste local encontramos uns “personagens”: macacos ladrões, que não podem ver nada, especialmente de comer ou beber, dando sopa, que levam pro alto das árvores. O problema dessa intimidade com os humanos é que eles acabam bebendo refrigerantes, cerveja e comendo biscoitos e outras “porcarias” industrializadas. Havia também um quati muito gaiato, que ganhou o nome de Genebaldo e que fica fuçando o chão, os troncos das árvores, a perna da gente, em busca de alimento. Ele come insetos, aranhas e o que consegue surrupiar. Tem unhas grandes e um focinho comprido e macio. Muito simpático, ficou nosso amigo.





O povo da região é muito “musical”. Os gêneros mais difundidos no momento são o Brega, a Cúmbia, o Zuki, o Boi. Há vários grupos de dança, todos com muita sensualidade. No período em que lá estivemos, estava acontecendo o 14o Festival Nhá Rin, comemorando o aniversário da cidade. Estandes, barraquinhas e um grande palco com arquibancadas foram construídos numa rua do Agreste.  Durante 10 dias houve apresentações dos grupos da cidade de dança, música, capoeira, teatro, além de poetas e um concurso de Miss. Nas barracas muita cerveja, cremes de frutas, vatapá, tacacá e outras extravagâncias.


Por falar em tacacá, não dá pra deixar de falar no tacacá da D. Teresinha. Numa esquina do Agreste, todos os dias esta simpática senhora monta sua mesinha com muito esmero a partir das 16.00 hs. Servida em cuia própria, pintada de preto com desenhos de flores em relevo, a bebida de origem indígena alimenta e esquenta a alma! Uma goma de mandioca vai por baixo. Em seguida vem o tucupí, um caldo extraído da mandioca, bem temperado, depois as folhas de jambú, uma planta que dá uma leve sensação de dormência, formigamento nos lábios, camarão seco (o bom é o que vem do Maranhão) e pimenta a gosto. Sentados num banco de madeira, só faltávamos entrar em êxtase, tomando aquela delícia. Cada um “monta” o seu de acordo com seu gosto: bem tucupí, pouca goma, mais pimenta.... O povo senta, toma seu tacacá e segue seu caminho. D. Teresinha lava com água as cuias em uma bacia de alumínio bem polida e as deixa escorrer emborcadas sobre a mesa. D. Teresinha também serve mingáu, com ou sem canela, o que nós aqui do Rio de Janeiro chamamos de canjica, feita com milho branco, prato típico das nossas festas juninas. Aos sábados ela prepara também o vatapá, outra iguaria.

Minha ida ao laranjal do Jari foi a convite da SANS, Sociedade Amapaense para a Natureza e Solidariedade, uma ONG que, em parceria com a Prefeitura, Governo Estadual e Ministério do Meio Ambiente  desenvolveu projetos na cidade. Lá estive para realizar uma Oficina de Brinquedos de Sucata com jovens do Projeto Cidadão Ambiental.

Meses depois lá estava eu de volta, dessa vez realizando uma pesquisa de campo para elaborar o Guia das Habilidades Humanas do Laranjal do Jari e a Agenda Ambiental para Professores, publicações do Projeto Cidadão Ambiental, uma parceria da SANS com a Prefeitura e o MMA.

A Agenda Ambiental para Professores foi feita em parceria com Claudia Tebyriçá, artista plástica e educadora, minha parceira em diversos projetos.

A partir das minhas observações e entrevistas no local e pesquisas em livros e outras publicações, identificamos as questões ambientais mais importantes naquela região. Foi uma surpresa constatar que, em plena região amazônica, com rios imensos e água por todos os lados, justamente  a água é um problema em municípios como o Laranjal do Jari. Em média somente 25% da população urbana é atendida com água tratada.Os custos do tratamento são altos e há muito desperdício. 80% dos domicílios depositam seus dejetos sanitários em vala negra ou diretamente no rio, o que acaba tendo graves conseqüências na saúde da população.

Na Agenda nós apresentamos para os professores sugestões de atividades, temas para reflexão em sala de aula e na comunidade além de um anexo com  bibliografia sobre meio ambiente e outros assuntos afins.

Como queremos que o nosso planeta seja no futuro?
O que planejamos deixar como herança para as próximas gerações?

É fundamental pensar sobre isso, seja no Laranjal do Jari seja em qualquer outra parte do planeta!

Christianne Rothier
Fevereiro de 2003

(Este texto foi publicado na Revista Velejar e Meio Ambiente) 

A Agenda Ambiental para Professores e o Guia de Habilidades Humanas estão disponíveis para download aqui no blog

Como estará o Beiradão após todo esse tempo?
Estou "cuíra" (uma expressão amapaense para a curiosidade) pra ver o programa na TV e matar um pouquinho as saudades